terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

correspondência 2

sempre que quiser escreva
a ponta do teu lápis
na ponta da minha língua
mesmo que você se esqueça
me anote num lugar qualquer
que desapareça
os papéis dos meses passados
lista de compras
bilhetes velhos de cinema
números de telefone
ticket de supermercado

eu não vou deixar recado
mesmo que você atenda
mesmo que você atenda.
Mergulha a cabeça
no molho de sal
E ouve a nau de teu barco
Ir para longe
Ancorar
Os dedos dos pés
furando a areia
Nem vai dar tempo
de dizer ai
Nem vai dar
O mar pode curar o que for
A solidão
O amor
O mar transforma o corpo
em cardumes
Cicatriz de sal
Pequeno detalhe do tempo.
Vez ou outra me roubam
um pedaço do couro
e usam de cesto
para trazer fios
que serão nós de poemas
Eu sinto um frio
É o que me faz vivo
Deste carretel
um dicionário a céu aberto
sendo a linha de costura
a bala na agulha
de um poema honesto
Não há palavras
para medir o mistério
de saber-se a si
de aprender o outro
Tampouco muito ou pouco
Não vende em pó
Não está de pé
Eu carrego na costura
da bolsa volumosa
de minhas pálpebras
de onde brotam as melhores histórias
em forma de flechas e lama
Os presentes e os convites
Os desejos e os adeuses
Um momento
Afinal, cada história
é (também) um momento.
Vir de longe é como
mudar de estação
viajar de trem
de outono ao verão
(des)embarcar n'um dia
úmido e marítimo
quente. bem quente
sob as pestanas molhadas
de suor olhar o sol
Fosse de carne e osso
e o Rio de Janeiro
seria um amor novo.
breve
aterrissar a borboleta
no dedo do medo
demora tão pouco
e já avuou
sobe junto um gelo correndo
na espinha
como querendo ganhar a corrida
des-medida
não existem réguas nesta casa
o povo fala alto
o povo faz silêncio
o exagero é permitido
mesmo que nunca se tenha falado disso.

do interior

deitados na cama de cana
espiam a plantação de algodão
teriam feito mudas de feijão?
como daquelas que se faz na escola...
as mãos amarradas sabem como subiu
cada pé do deserto verde
quem terá plantado
algodoado tão alto
o céu azul?
o silêncio é uma caixa inquieta
que guarda toda possibilidade
não fala não late
incomoda mais que coceira
o silêncio é uma meditação verdadeira
mas não vejo porque
a não ser quando me meto no meio do mato
a ouvir o ruído que o mundo faz
para calar tudo aquilo que aqui há
eu abro a caixa
e ela solta o ar
shhhhhhhhhhhhh.
shhhhhhhhhhh
e fez-se o som.
ah se
a madrugada fosse
mas não é
nem sono
nem foda
nem nada melhor
do que um punhado
de poemas.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

A pedrada

Na ignorância de
no caminho
catar do chão as pedras
para lá adiante trilhar o caminho
e caminhando rápido
para juntar mais pedras
chegar tão longe
sem olhar as caras
se ouvir os assobios
(nem mesmo assobiar)
ou sem nem dizer alô.

Com o peso mórbido
de um saco nas costas
Pedra por pedra
erguer um castelo
e se guardar na torre
Do alto ver
quantos foram se perdendo
no percurso
O que caiu o queixo
diante do sol nascente
e nunca mais se levantou
O que amou perdido
perdeu até os dentes
quando o amor passou
Os pequeninos
vidrados no homem
de saco nas costas
cresceram o tempo
e fizeram pedreira
Mas chegar ao fim
Da janela da torre
ver ao longe
ter erguido um castelo
no final do caminho.

o tesão
é uma concha oca
que você bota na orelha
e escuta o mar na boca.
Pensa que não?
Fiz o cronograma
Trabalhei dia e noite
Desenhei planilha
Planejei os gastos
Dei comida aos gatos
Limpei a casa
Fiquei limpa
Botei tudo na tabela

Mas agora é madrugada...
E o meu adulto é brocha.
A minha criança é sagitário
com lua em câncer
ascendente em gêmeos
e vênus em escorpião

Tá lá fora
Brincando pelada
Andando descalsa
Cantando na roda.
Quando o dia quer ser palhaço
E você só consegue ser carpideira
Mórbido mesmo, quê dê?
Ao menos ser pálido
E não sorrir para a foto.
o desejo não pode
ser visto
a ohos nus
senão a braços
pernas e troncos

diante de um olhar fixo
o desejo se despe.
a chuva
tem cheiro
de amor
bem feito.

correspondência

Querer sozinho
tem sua graça
um dia arde
no outro passa.
Viajar na velocidade da luz
dos faróis do ônibus
O pisca que faz na cara
os riscos no chão da estrada
Arriscar tudo
quando não há nada
No escuro
o céu cintilante
No escuro
As árvores e seus corpos lentos
empolando a paisagem
Esse ar gelado
coagula o meu sono
seca a garganta e os lábios
que cantam mudos
o som que toca nos fones.
Quando o silêncio
fica pelado
minha boca toca
o teu corpo calado.
Vou fritar os meus miolos
E expor a frigideira
Na Bienal de artes

A instalação terá o nome
"Self-made man".
Na fábrica de sutiã
essa costura
apertando o peito.
No balcão
um misto
(de) frio e quente
presunto e gente
um copo só
Riscar com a unha
o papel que forra
a mesa
e lá no fundo
perto do banheiro escuro
uma japonesa
ou coreana
ou chinesa
essas coisas
de mundo tôdo
num lugar só.

À espreita
do palpite do garçom
sobre o Palmeiras
mesmo já sabendo
a opinião

A bem da verdade
pensar que se está
o tempo todo
sendo observado
por isso olhar de lado
por isso andar sempre com o fone
que é pra ter trilha sonora

A bem da verdade
uma vontade enorme
de pedir um copo pra você.
levei na cara
a lambida da asa
de uma arraia
voando alto
no oceano
perto do sol
quando você chegou
e me lançou a real.
Quando de longe vindo
cheguei ao centro
de seu coração, amor
não era um rebento
Dia de verão
m'abraçou com os braços
e ancas
d'uma árvore frondosa
Tinha sombra
eu tinha sede
Mergulhei disposta
A língua na aposta
da fruta boa e da fruta podre
(privilégio da estação)
Não podia eu
com os pés calejados
de tanto chão batido
querer semente de feijão
ainda algodoada
Em sua fronte larga
Eu trazia o desejo de toda semente plantada
E debaixo de sua sombra
não só cabia o meu alento
mas cada passarinho
estrela cadente
mariposa
ou mesmo gente
Um só pedaço de terra
não pode ser estrada
a esculpir os meus calos
Tampouco minha rede estendida
é capaz de ser embalo
para todos os seus outonos
O peito roçado
ontem, hoje, amanhã
quer um saco de sementes.

pequeno poema para enquanto você dorme

cuspi um chuvisco
de improviso
pra tua grama
amanhecer de orvalho

de noite
sempre invento um jeito
de perder o horário
e olho a fio o teu sono
esticado no galho.
Há cinquenta anos
sentada nessa calçada
vejo a cena, o trabalho, essa gente cansada
O que foi mesmo construído
pelas nossas mãos?
Os sonhos, as casas, bairros, escolas
do patrão
Que no sorriso nos dizem
na televisão
Quanto os números aumentam
e aqui não chegam não
O meu filho se sujou
com dinheiro nas mãos
Aquela fome, a propaganda
que era possível ser
alguém na vida, erguendo os muros
que iam lhe conter
Ontem de noite
em frente à porta
um homem armado gritou
e a vizinhança acorda
Pega o que deve
e a lei escreve o teu perdão
Mas como pode, tendo feito tudo
ainda dever?
Pela manhã, três jovens policiais
miravam minhas rugas, pediam minha morte
Saí despejada, sob a luz de um flash
O meu único chão era a bengala.

Para a voz de Carmen, 83 anos, despejada na Espanha pelos poderosos da casa onde viveu durante 50 anos.


Do tamanho

Para ter um corpo ciliado
que fosse penteado
pelo caminho desse rio
Poder ser movimento
e criar lodo
porque dançando parado
Diante do gigante
ser aquele lugar
para onde ninguém vai olhar
e sê-lo tranquilo
pequeno e constante
casa de peixe
piscina de formiga
pedaço do mundo.
Bom dia
que a noite
já era
O galo do morro
nunca erra.
Ser insone
é velar o sono de todos
e não ser visto babando por ninguém
Na calada
o estrondoso ronco do vizinho
o sexo gostoso do 203
E mesmo com a janela
para um corredor de prédio
ouvir os carros ventando a rua
Tem galo cantando no morro
agora canta fora de hora
Até os gatos, noturnos
adormeceram, menos eu
É quando penso
em começar a estudar francês
a pintar o nome dos temperos
nos vidros da cozinha
A comer tapioca
A ver um filme sozinha
A mudar de área
A tomar um ar.

correspondência 2

sempre que quiser escreva
a ponta do teu lápis
na ponta da minha língua
mesmo que você se esqueça
me anote num lugar qualquer
que desapareça
os papéis dos meses passados
lista de compras
bilhetes velhos de cinema
números de telefone
ticket de supermercado

eu não vou deixar recado
mesmo que você atenda
mesmo que você atenda.